quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Uma Maria e um José

Fotografia de Rita Pato

UMA MARIA E UM JOSÉ

Ele adorava-a. Ela adorava-o. Ele sentia que não podia viver sem ela e ela sem ele. Ela era o ar que respirava. Dormia a pensar nela e acordava com ela nos seus pensamentos. Declarou-se e ela disse ‘sim’. Namoraram e ele não descansou enquanto não conheceu cada sinal, marca distintiva e expressão dela. Ela imaginava-o sempre de mão dada e como pai dos filhos que sempre desejou.
Era um homem com futuro. Militar que conhecia marechais e que depressa seria um advogado promissor com escritório famoso e com ministros entre os amigos. O seu nome deixou de ser José e passou a ser apenas tratado pelo apelido. Arranjou casa num sítio famoso e depressa nasceu o primeiro filho, mas a esposa foi trabalhar após o período de aleitamento e isso não o deixou descansado. Esperava-a sempre à saída e levava-a sempre ao emprego. Era a sua jóia. Era a sua razão de viver. Era perfeita, com a voz perfeita, a altura perfeita, os olhos perfeitos e até sabia tocar e falar francês como o Gato Maltez. Fazia-lhe festas como se fazem a quem se ama e beijava exageradamente. Quando ela cuidava do filho, ele tinha ciúmes. Quando ela ficava a trabalhar até mais tarde, ele perdia litros de suor a imaginar com quem estaria naquela secção onde só trabalhavam senhoras. O trabalho dela feria-o, pois não podia estar ao pé dela. Tinha ciúmes dos irmãos e dos pais dela. Aquela harmonia familiar assustava-a a sua harmonia matrimonial. Chocava-o não saber o que ela falava dele à família. Estar por horas longe dela era assustador, torturante que causava-lhe suores frios e estimulava a imaginação para lá dos limites. Um dia desconfiou de um olhar inocente de um primo que foi lá a casa deixar uns queijos e uns bolos típicos da terra. Encontrou-o lá em risos com a esposa. Pouco se importara que fosse primo, pois toda a gente sabe que os primos são os piores amigos das esposas. Amuou dias e um dia saiu-lhe tudo de uma vez pela boca, enquanto as pálidas bochechas mudavam para encarnado vivo. Ela argumentou e ele bateu-lhe com as costas da mão. Partiu-lhe os óculos e ela não chorou e ele ficou indignado. Sentia que ela ainda estava a mostrar que era mais forte que ele. Horrível.
Ele saiu de casa. Como é que ela se atrevia a olhá-lo daquela maneira? Ele que tanto a amava. Ele que era o pai dos filhos dela e que tanto trabalhava para aquela família. Ela que teimava em não deixar de trabalhar.
 Depois voltou para casa e procurou ter uma conversa séria e inteligente com ela. Ele tinha várias licenciaturas e apesar de ela ser menos esperta, certamente que bem conversados tudo entraria nos eixos. Mas na semana seguinte ela parecia que não queria aprender e voltou a apanhar depois de ter dito que ia a casa de uma irmã e ninguém ter atendido o telefone, quando ele tentou ligar para lá da esquina. Era uma desculpa esfarrapada aquela de que não quiseram atender porque estavam a matar saudades. Portanto, apanhou e apanharia sempre que não tentasse compreender a vida simples do convívio familiar. Um dia de muito apanhar e de tão negra ter ficado, a família nunca mais a deixou ir para casa.
Ela sobreviveu mais vinte anos sem ele, mas muitas mulheres não sobrevivem a tão grandes amores.

5 comentários:

  1. Infelizmente, muitas não sobrevivem e outras apenas sobrevivem.

    Muito bom!
    abraço

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  2. Infelizmente é verdade.
    Muito obrigado e um abraço, amigo Henrique.

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  3. As grandes historias de amor,raramente,têm um final feliz!
    Uma belíssima e verdadeira composição.

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  4. Olá, boa noite e obrigado pela visita.
    Eu felizmente conheço e conheci várias grandes histórias de amor e até de familiares. Conheci também 3 histórias de 3 senhoras em que duas morreram de tristeza pouco tempo depois de verem partir os maridos e de uma última que não morreu de amor, mas tentou o suicídio, já de idade avançada e que depois de tratamento psiquiátrico recuperou alguma qualidade de vida.
    Esta história tem amor, mas sobretudo amor obsessivo em que uma pessoa começa a tratar a outra como objecto de posse, coisa sua.
    Isso não é amor...
    Muito obrigado e votos de continuação de uma bela semana,

    João

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  5. Bom dia.
    Somente para transmitir,que SUBLINHO tudo o que acima diz.
    Continuação de uma boa semana.

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